As doenças endócrinas e o risco vascular

As doenças endócrinas e o risco vascular


publicado em Notícias

19/09/2024


As doenças endócrino-metabólicas são extremamente prevalentes na população, estimando-se que 53.1% sofra de excesso de peso ou obesidade, 14.1% de diabetes mellitus, 8% de hipotiroidismo primário, 6% de hipogonadismo masculino, 13% de síndrome dos ovários poliquisticos, entre outras. Embora classicamente conhecidas pela sintomatologia associada, o impacto multisistémico das endocrinopatias reflete-se no sistema vascular, sendo a doença vascular frequentemente a principal causa de mortalidade precoce nestes doentes. O diagnóstico precoce através de programas de rastreio das patologias mais prevalentes e mediante a observação atenta em consulta de sintomatologia sugestiva de patologias menos prevalentes é essencial para a redução do risco vascular.

O excesso de peso e obesidade (EP/Ob), principalmente a adiposidade visceral e ectópica, aumentam o risco vascular. Por cada kg/m2 de índice de massa corporal acima de 25, assiste-se a um aumento do risco para insuficiência cardíaca em 12%, para doença coronária em 7% e para acidente vascular cerebral em 4-6%. Os calculadores de risco mais utilizados (SCORE2, Framingham, Pooled Cohort Risk Equation) não incluem o EP/Ob nem suas métricas como variáveis e não há consenso acerca da forma como o EP/Ob possa ser usado como modificador de risco. Tal faz com que o EP/Ob sejam facilmente esquecidos na estratificação do risco vascular e consequentemente no tratamento. O perfil da dislipidemia na obesidade é tipicamente o da dislipidemia aterogénica (hipertrigliceridemia, redução do HDL-C e aumento das partículas pequenas e densas do LDL-C, sem aumentos expressivos das concentrações de LDL-C). A perda de peso traz benefícios lipídicos, principalmente nos triglicéridos e LDL-C, já havendo estudos a documentar benefícios vasculares com a utilização de agonistas dos recetores da GLP1 (semaglutido – estudo SELECT) em doentes com EP/Ob em prevenção secundária.

A diabetes mellitus (DM) tem sido considerada um equivalente de risco vascular, na medida em que duplica o risco de doença coronária e vascular cerebral e mortalidade associada. Até 85% dos doentes com DM tipo 2 sofrem de dislipidemia, sendo a dislipidemia aterogénica o perfil mais frequentemente observado. O SCORE2-Diabetes é a ferramenta que atualmente se recomenda na estimativa de risco vascular em doentes com DM sem doença vascular estabelecida e inclui variáveis adicionais relevantes tais como HbA1c e taxa de filtração glomerular. O tratamento dos doentes com DM é multifatorial, exigindo-se o controlo glicémico, lipídico, tensional, tabágico e ponderal como pilares do tratamento, sempre associado à utilização de fármacos modificadores de prognóstico (agonistas dos recetores da GLP1 e/ou inibidores da SGLT2, e por vezes finerenona), de modo a reduzir o risco “residual” que tende a ser muito elevado nesta população.

O hipotiroidismo primário frequentemente provoca alterações lipídicas e hemodinâmicas que aumentam o risco vascular. Embora já identificáveis em doentes com hipotiroidismo subclínico, as alterações são mais expressivas nos casos de hipotiroidismo franco, com um aumento do LDL-C, triglicéridos, colesterol total e Lp(a). Assim, compreende-se que se assista a um aumento do risco para doença coronária (RR 1.5), vascular cerebral (HR 1.89) e internamento por insuficiência cardíaca (HR 1.86) nestes doentes. O tratamento com levotiroxina consegue melhorar as alterações lipídicas na maioria dos doentes com hipotiroidismo franco, sendo os benefícios menos expressivos nos casos subclínicos.

O hipogonadismo masculino associa-se de forma bidirecional a vários fatores de risco vasculares. A testosterona influencia o metabolismo glucídico, lipídico e afeta a adipogenese, promovendo alterações pró-aterogénicas, também afetando a inflamação e disfunção endotelial. A abordagem do doente com hipogonadismo é complexa, exigindo-se sempre um estudo etiológico antes da decisão terapêutica. O tratamento com testosterona é seguro em doentes sem contraindicações, podendo associar-se a benefícios nos fatores de risco vascular, sobretudo quando utilizadas as formulações transdérmicas (demosntrado no estudo TRAVERSE).

A síndrome dos ovários poliquísticos (SOP) diagnostica-se com recurso aos critérios de Roterdão, que incluem evidência de anovulação, evidência clínica ou bioquímica de hiperandrogenismo e/ou achados imagiológicos típicos de ovários poliquísticos. As implicações da SOP são a nível de fertilidade, no plano estético, ginecológico (irregularidades menstruais, espessamento e pólipos endometriais) e cardiometabólico. Estima-se que até 80% das mulheres com SOP sofram de EP/Ob, 70% de dislipidemia e 30% de hipertensão arterial. Recomendações internacionais de 2023 sugerem que as doentes com SOP sejam consideradas doentes com risco vascular aumentado. O tratamento com recurso a medidas nutricionais, atividade física estruturada e terapêutica farmacológica tem resultado em benefícios multisistémicos na SOP que vão para além do impacto vascular, assistindo-se a melhorias na fertilidade e ciclos ovulatórios.

A acromegalia, embora rara (prevalência: até 13.5 por 100.000) é uma entidade subdiagnosticada e de diagnóstico frequentemente tardio (média de 5-6 anos após o inicio dos sintomas) que resulta de níveis suprafisiológicos de hormona de crescimento. Quando não tratada, associa-se a uma redução da sobrevida em 10 anos. As principais causas de morte são, por ordem decrescente, a doença vascular, oncológica e patologia respiratória. O risco vascular na acromegalia é elevado pelo impacto lipídico (hipertrigliceridemia, LDL pequenos e densos e elevação da Lp(a)), tensional, glucídico e miocárdico direto (miocardiopatia). A elevada prevalência da síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS) (prevalência de 69%) também contribui para o risco vascular. O limiar para investigação da acromegalia deve ser baixo, sobretudo em doentes com várias patologias potencialmente associadas (DM2, SAOS, HTA, síndrome do canal cárpico, hiperhidrose e/u artrite debilitante), mesmo que o doente não apresente achados fenotípicos clássicos de acromegalia. O tratamento simultâneo da doença de base e dos fatores de risco vascular permite uma redução do risco vascular significativo, estando a cura da acromegalia associada a uma redução da morbi-mortalidade e a uma esperança média de vida normal.

Assim, a patologia endócrina, dada a sua elevada prevalência e impacto multisistémico, assume um papel chave na avaliação do risco vascular. O diagnóstico precoce e tratamento adequado são essenciais na mitigação da lesão de órgão alvo, melhoria do prognóstico e potencialmente na redução do risco “residual”.

Dr. Carlos Tavares Bello
Médico Endocrinologista