A gravidez como oportunidade de rastreio
publicado em Notícias
06/11/2024
A alteração do perfil lipídico é parte integrante das adaptações fisiológicas na gravidez. Assistindo-se ao aumento de produção de hormonas sexuais e a alteração do metabolismo hepático e dos adipócitos, verifica-se o aumento de colesterol total, LDL e triglicéridos em circulação na mãe. Por sua vez, o LDL circulante é o principal substrato na síntese de progesterona na placenta. Mais ainda, compreende-se a importância das moléculas lipídicas durante o desenvolvimento: as moléculas de colesterol são essenciais no desenvolvimento de membranas celulares, ácidos biliares, e hormonas esteroides. 20 % dos esteróis do embrião derivam do colesterol materno e, eventualmente, uma percentagem superior em mulheres com hipercolesterolemia.
Embora não existam valores de referência de lípidos ao longo da gestação, sabe-se que os níveis de colesterol total, triglicéridos e lipoproteínas de baixa densidade aumentam progressivamente, alcançando o valor máximo no final da gestação; cerca de três a seis meses após o parto, regressam aos valores anteriores à gravidez.
Do mesmo modo que o défice de colesterol durante o desenvolvimento fetal leva a malformações, atraso no desenvolvimento e alterações cognitivas, o seu excesso também pode estar associado a complicações durante a gravidez e após o nascimento.
Mulheres com triglicéridos >250mg/dL apresentam maior risco de parto pré-termo e restrição do crescimento intrauterino; de macrossomia fetal; de desenvolver diabetes gestacional (sabendo esta está relacionada com aumento de risco cardiovascular ao longo da vida da mãe). A elevação do perfil lipídico parece ser responsável pela lesão endotelial, causada pelas LDL oxidadas, aumentando o risco de pré-eclâmpsia. Adicionalmente, a alteração do metabolismo dos lípidos na placenta, pela hipercolesterolemia materna, parece levar ao início dos fenómenos de aterogenese ainda durante a vida fetal.
O doseamento do colesterol entre o 5.º e o 6.º mês de gestação pode levar ao diagnóstico de hipercolesterolemia familiar (HF) – a principal alteração do metabolismo dos lípidos na Europa – sobretudo na sua forma heterozigótica, com prevalência estimada de 1:200–250. A HF heterozigótica não tratada leva a eventos cardiovasculares antes dos 55 anos (homens) e 60 anos (mulheres) e, na forma homozigótica (muito mais rara, com prevalência estimada de 1:160.000–300.000), leva a morte cardiovascular antes dos 20 anos. O aumento de colesterol total é semelhante em mulheres saudáveis e mulheres com HF, podendo facilmente alcançar níveis superiores a 180mg/dL nestas.
Deste modo, a gravidez pode ser encarada como uma oportunidade de rastreio em mulheres de idade fértil. O doseamento de colesterol total pode ser obtido na avaliação trimestral programada, facilitando o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar, ainda sub-diagnosticada na população europeia. Embora haja necessidade de mais evidência no tratamento da dislipidemia durante a gravidez, futuramente poder-se-á conseguir melhor controlo de complicações na gravidez, e identificar doentes com elevado risco cardiovascular, culminando na redução da doença aterosclerótica coronária e morte precoce.
Dr.ª Inês Nogueira da Fonseca
Especialista em Medicina Interna